terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A primeira lei de Newton

Faça-se a luz, disse o Senhor, e a luz foi feita. Se o brilho primeiro foi o germe de toda Criação, o sol de um janeiro típico, com seus calores infinitos e suas ameaças tempestuosas de fim de tarde, era convite imperativo para um menino e seus sete anos. Sem saber ainda, como todos não sabem àquela idade, que se está insanavelmente preso às ações alheias sobre os nós, Adriano resolvera inaugurar o dia convocando os outros. Porque era assim que sua mãe se referia aos amigos - “Dri, vai brincar com os outros, Dri, se você e os outros arranharem o meu piso...” e porque era assim que eles se referiam a si próprios quando juntos – “Vamos lá, eu, você e os outros”. Duas palmas no portão da frente e uma cabeça descabelada na janela:
- Dona Neuza, o Alex pode sair pra brincar comigo?
- Pode não, Dri. Alex tá de castigo porque ficou de recuperação.

Em Tchekhov vocês verão que isso acontece o tempo todo. Todo um teatro se construindo sobre essa questão. Veja, por exemplo, As três irmãs. Elas passam a peça inteira dizendo que tudo vai mudar quando forem para Moscou. Mas não vão. A Gaivota. Parte das figuras está presa a uma vida que não ama. A fala final de O tio Vânia: sobreviveremos. Ele diz isso, vamos sofrer, nada vai mudar, a vida será sempre a mesma, nós sobreviveremos e quando morrermos seremos reconhecidos. Imobilidade. Percebem?
E ele pensou para si que aquela era a vigésima - sétima aula, do vigésimo - sétimo curso de Introdução à Teoria do Teatro, nos seus vinte e sete anos de carreira na Universidade na qual se graduara, cursara o Mestrado e o Doutorado. A peça que jurou escrever a vida inteira continuava em sua cabeça. Somente.

Canal 83. Uma fada e seu marido fazem seu protegido entrar na história em quadrinhos de seu herói favorito. Já tinha visto aquele. Canal 87. O imperador engraçado virava lhama. Já tinha visto aquele. Canal 88. O menino samurai era banido da aldeia. Já tinha visto aquele. Já tinha visto o do 89, 92, 94. Adriano já tinha visto tudo aquilo, já tinha visto também a mesma expressão esvaziada com a qual a mãe olha o pai na mesa do café e o mesmo ar de desconforto com o qual o pai olha de volta para a mãe. Adriano já tinha visto o que acontecia sempre que a mãe dava aquele suspiro fundo e dizia como se não quisesse que ninguém ouvisse, mas querendo: Ô vida. Adriano já tinha visto o que acontecia quando o pai falava para a mãe, sem olhar para ela: O que foi dessa vez. Adriano já tinha visto as duas portas batendo, a do quarto e a da rua.

Há um mês e dezoito dias que a gorda Janaína só comia folhas, verduras, legumes e grelhados. Os recheados bombons de nozes trocados por cenouras raladinhas e molho de iogurte natural e uma foto de uma mulher magra de biquíni na porta da geladeira. Os refrigerantes e suas bolhas substituídos pelos chás e suas quenturas. As batas largas e os vestidos sem forma cedendo espaço aos vestidos acinturados, às saias curtas e às calças justas. Por enquanto só na imaginação, logo, logo no corpo. Jaílson, que não a assumia porque trabalhava para o pai da namorada, a oficial como ele dizia, Jaílson, que nunca passava o fim de semana com ela porque você sabe, né, Jaílson seria permutado por um nome novo, único ele única ela. Há um mês e dezoito dias que tudo era uma espera.
Como se já esperasse por aquilo, a balança exibe no mostrador digital os números em vermelho. Noventa quilos e duzentos gramas. Os mesmos noventa quilos e duzentos gramas de um mês e dezoito dias atrás. O telefone celular vibrando revela em sua tela uma única letra. J.

Arroz, feijão, salada e bife. Mãe, a gente podia ir na casa da tia Sula na praia. Mas se tiver chovendo muito a gente pode ficar jogando banco imobiliário. Mas o papai pode ir no fim de semana e aí a gente volta só no domingo. Mas ela não brigou comigo. Arroz, feijão, salada e bife. Quando eu acabar posso entrar na piscina. Mas se chover eu saio. Mas se eu ver um raio eu saio. Então, se eu vir um raio eu saio. Ele viajou. Ele tá de castigo. Já li todos. Não tem nada novo passando. Acabou já. Arroz, feijão, salada e bife. Por que que nunca tem peixe. Alergia, acho que tenho isso com salada, olha só. A gente podia ir no cinema. Mas sábado tá muito longe. Você podia me dar o boneco do fogo. Não, aquele é do vento. É igual nada. E se. Arroz, feijão, salada e bife. E maçã.

Os dias eram de lembrar e as noites de não dormir. No sofá escuro da sala escura, Ana e suas muitas rugas. As mãos secas viram as páginas do álbum ensebado por hábito já, maquinais. Três mocinhas com uniforme de gala do Instituto de Educação. Filha minha não trabalha fora. Uma mesa grande e um Natal. Quinze pessoas. Os olhos velhos se focam em uma só, um rapazinho magro, com cabelos ralos e olhos de que vai desmaiar. Guilherme. Filha minha não fica de sem-vergonhice com primo. Uma menina fantasiada de noiva. Por um instante o corpo velho ressente-se de pancadas antigas. Filha minha não se separa do marido. Dois meninos e duas menininhas. Não sou pai de anormal. Foi numa quarta-feira que abraçou o que ia. Um menino e duas meninas. Filha minha não fica grávida de vagabundo. Foi numa terça-feira que abraçou a que tinha saído dela e nunca mais viu. Um menino e uma menina. Não sou pai de bandido. Foi numa sexta-feira que abraçou um caixão. Uma mulher sozinha. Foi num domingo que abraçou uma boneca de pano. Mole. Caída no chão junto com um vidro vazio de comprimidos.

Adriano não gostava do silêncio da hora da novela. Ele não sabia explicar porque, mas parecia que a sala estava vazia, mesmo a mãe e o pai estando sentados ali. Ele não parecia estar ali também. Achava engraçado, mas sempre imaginava um desenho que um dia ia fazer. O nome ia ser Minha família na hora da novela. Ia desenhar ele, o pai e a mãe em frente à TV só que com os olhos virados para dentro, não para fora. Em cima das cabeças ia desenhar esses balões de quadrinhos, que mostram o que as pessoas pensam. No da mãe ia escrever “Acho que não gosto dele”, no do pai “Acho que quero ir embora” e no dele “Por que ninguém conversa comigo?”. Pena que não tinha giz de cera.
O toque do telefone, inesperado, não-convidado, assustou os três. O pai foi mais rápido e com uma cara estranha passou o telefone para mãe dizendo: Seu tio, irmão da sua mãe.
Depois que a mãe desligou o telefone, Adriano descobriu algumas coisas. Que tinha uma bisavó chamada Ana. Que ela tinha acabado de morrer. Que era estranho ter uma bisavó que morria sem tê-la conhecido antes. Porque todos os amigos que tinham bisas falavam de umas velhinhas quietinhas que estavam sentadas na sala desde sempre e que acordavam mortas um dia. Não era assim. E descobriu que iam ao enterro da sua bisa logo de manhã porque o pai tinha que trabalhar e ninguém ia poder ficar com ele.
Quando a mãe o sacudiu cedinho, ele, por um segundo, pensou que fossem à praia. A lembrança da noite esmurrou as esperanças. O cemitério era longe, longe, andou de ônibus e de trem. Nunca tinha andado de metrô e não foi naquele dia que teve sua primeira vez.
Fazia calor, calor, e ele se sentiu mais quente perto das velas da capela minúscula. Um tio magro passou a mão no cabelo dele e disse que sempre quis conhecê-lo. Falou que a velhinha morta era sua mãe, vó da mãe do Adriano. O tio tinha um livro nas mãos, Adriano reparou. O nome era O Jardim das Cerejeiras.
A tia Jana, irmã da mãe, estava lá também. Adriano viu as duas chorarem abraçadas falando que tinham enterrado a mãe delas, vó do Adriano, ali também.
Numa hora em que ninguém estava prestando atenção, o menino chegou perto do caixão da bisavó. Foi uma sensação estranha olhar uma morta, que era da família, e não sentir nada. Quando o Floquinho morreu lembrava que sofrera tanto. A bisa era muito velhinha e, diferente do que as pessoas no velório estavam dizendo, não parecia que ela estava dormindo. Parecia que ela estava parada no caixão, parada só. Imóvel. Fixa.
Depois que enterraram a bisavó dele, Adriano ouviu os coveiros conversando. Um disse: É, amanhã vai fazer calor de novo. Mais sol. E o outro falou: Vai mesmo. Tudo de novo.
E Adriano sentiu doer dentro de si quando se viu repetindo dentro da cabeça: Tudo de novo. De novo. De novo.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Entreatos

Sábado. Manhã. Dia de ficar com o Radamés. Um diálogo.

- Pai, sabia que você não precisa ficar fazendo essas coisas de pai pra mim?
- Como assim, coisas de pai?
- Isso. Me trazer na praia, jogar bola comigo. É que você não gosta muito, dá pra ver.
- Gosto sim. Gosto tanto que faço. Por que você não quer deixar eu fazer isso?
- Porque isso o Marcelo faz e faz melhor que você. Ele até sabe fazer embaixadinha. Gosto mais quando você faz aquelas outras coisas.
- Que outras coisas?
- Me levar no cinema, no Mc Donald’s, no teatrinho. Ler aqueles livros. Aí você não precisa ficar fazendo essas coisas de pai, entendeu? Mas eu vou continuar te chamando de pai, entendeu?
- E o Marcelo? Você vai chamar ele de quê? Porque agora ele ta lá com vocês.
- Ué. Vou chamar ele de Marcelo. Mas ele faz essas coisas de pai melhor que você.
- Ah, sim. Você viu o DVD que eu te dei?
- Vi. Fiquei com pena do Simba quando o pai dele morreu.
- E o que você achou do desenho?
- Mais ou menos. Muita música. Mas eu acho que gostei. Mas eu também gosto de ver Naruto. Sabia que um dia eu perguntei à mamãe por que que vocês não eram casados se tinham filho?
- E o que ela disse?
- Que você só ama o seu umbigo. Háhá. Achei tão engraçado amar o umbigo.
- E o que você acha?
- Acho engraçado amar o umbigo, háhá...
- Não disso. O que você acha do que ela disse, você acha que eu não amo ninguém?
- Sei lá. Mas eu acho que você me ama. Porque você é meu pai, né?
- Eu te amo.
- Viu? Você não sabe fazer coisa de pai. Pai não fica falando isso, eu te amo.
- E o que mais a sua mãe falou?
- Que foi culpa sua eu ter esse nome esquisito. Disse que teve vontade de te dar na cara. Que o meu nome ia ser Felipe. E que você tinha mania de óspera.
- Ópera. É ópera que se diz. Mas você não gosta do seu nome?
- Sei lá. Depende. Tem vez que eu gosto. Mas tem vez que não.
- E que nome você queria ter?
- Naruto.

O que ele pensava enquanto o casal de amigos chegava na porta do cinema ao mesmo tempo que – surreal – um auto-falante tocava Nessum Dorma e enchia o centro da cidade com a voz de Aretha Franklin.

Será que eles sabem o que é a beleza? Por que que me dói tanto ouvir essa música? Será que é porque eu sei que a princesa Turandot não diz o verdadeiro nome de Calaf, mas sim “Amor”? Será que eles se amam?
Ou será que o que dói em mim é a voz de Aretha? Dizem que ela só teve oito minutos para aprender a música e cantar ao vivo. Essa voz preta, desmedida, chega a ser indecorosa. Por que que ela fica gritando All’alba vinceró! Vinceró!Vinceró! Pela manhã vencerei...Tão bonito “os beijos que quebrarão o silêncio que te faz minha”. Nessum Dorma. Ninguém durma.
Será que se eu só os abraçar eles vão saber o que está acontecendo? Se eu os abraçar e, chorando, beijar-lhes a boca, será que eles vão entender que o beijo é o desespero de quem não pode suportar a beleza disso? Eles vão entender que os olho agora como uma criança náufraga dos pais em shopping na semana do Natal olha para os adultos ao redor?
Será que Aretha Franklin sofre? Engraçado, ela canta com o corpo. Mas os olhos não estão cantando a mesma música do resto do corpo enorme. E é tão, tão bonito quando ela canta...Parece até o verso da Cecília: Não tenho inveja às cigarras, também vou morrer de cantar.
E, por que diabos, alguém põe Nessum Dorma para tocar nessa cidade quente, em plena quarta-feira de um dezembro sujo?

Chope, os três. Quarta-feira depois do filme. Nada surreal. Um diálogo (di é dois?).

- Caramba, aquela mulher é maluca. Aquela hora que ela fica tocando o braço da loira e manda ela fechar os olhos...uau...
- Super atriz mesmo. Acredita que ela já ganhou um Oscar aparecendo só oito minutos num filme?
- É por isso que eu não levo o Oscar a sério. Oito minutos dá pra fazer alguma coisa?
- Não seja por isso, quarenta segundos e já dá pra fazer um filho...
- Engraçadinho...Isso diz bastante sobre a nossa vida sexual...
-Hum...você não reclama na hora....
- Vocês podem me poupar dos detalhes? Ainda mais nessa minha fase monástica.
- Eu não entendo porque você ta sozinho...Cheio de mulher desesperada por aí...
- Vai ver é porque ele não quer uma desesperada...
- Sinceramente, agora não estou querendo nada....Fechado. Balanço. Se pudesse andaria com uma plaquinha: Só se aproxime se quiser uma transa rápida, não sentimental, mas honesta.
- Então, meu amigo, não sei porque você está sozinho....todo mundo quer o mesmo que você.
- Todo mundo, é?
- Menos eu. Porque você é a dona do meu coração....
- Cafajeste.
- Cafajeste, mas gostoso. E seu filho, como está?
- Lindo. Solar. Se eu acreditasse em Deus ia agradecer todo dia por ele não ter me puxado...
- E a mãe dele?
- Sei lá. Ela só fala comigo entre os dentes. O pior é que não sei porque que ela me odeia. Ela esperava o quê? Quando a gente começou a ficar ela me disse que não esperava muito daquilo porque ainda estava muito ligada no ex e que, além do mais, eu era de Áries e ela de Escorpião, não tinha futuro. Aí agora me olha com cara de donzela deflorada. Fica esfregando na minha cara o marido perfeito que arrumou. E não me perdoa por ter escolhido o nome do menino.
- Também, puta que pariu, Radamés é feio pra cacete. Não dá nem para achar um apelido...Radá, Meme, Dadá...putz.
- Eu não acho feio. Acho bem sonoro.
- Ah, mas você não conta. A sua filha se chama Aletea. Tadinhas dessas crianças. Já pensou se vocês dois tivessem um filho juntos? Putz. Imagina: Funéreo, Mozart Sebastião, Agapito...Parece até o nome da mulher do filme, como é mesmo?
- Sheba.

A amiga deu-lhe de presente de aniversário um livro de poesias. O gato de Chesire. Versos que ele sublinhou com caneta vermelha.

A vida é este soco na cara.
O vento que prenuncia a face contra a porta.
A porta que bate na tangente da pele.
O vidro do espelho nos punhos cerrados.
A vida é esta lágrima sádica.

O que ele pensava enquanto beijava a recém-conhecida. Canto de parede. Boate da zona sul.

Há um gosto além do gosto de bebida que passa pela minha boca e esbarra nas nossas línguas que se engalfinham como se lutassem para matar. O gosto da ausência em mim de uma coisa que não sei o que é e que você não vai poder me dar. Mas, mesmo assim, eu quero que nessa noite você vá para casa comigo e quero entrar no seu corpo como se ele fosse a porta para a saída do prédio que pega fogo, a fumaça invadindo os meus pulmões.
E aí você chega, maquiada, pronta, sorrindo. E nós conversamos e eu tento parecer interessante, descolado, livre. E você tenta parecer interessante, descolada e livre também. E falamos que, não, não sou de curtir muito a noite, ta muito decadente, tudo pasteurizado. E você diz que, não, não votei naquele cara mesmo. E falamos do seu MBA, do IPVA, do meu DOC. E eu digo que o que eu mais queria era beijar você e você pergunta – por que não beija então?
Então línguas brigantes. Eu digo que adorei o seu cheiro, você morde os meus lábios. Minhas mãos tateiam o seu corpo e conseguem sentir os seus mamilos endurecendo como se falassem que estão prontos para a invasão, como se corpos pudessem ser posseiros.
As línguas se enroscam e eu penso no seu corpo nu, nu como eu jamais ficarei e, bem sei, nem você ficará. Mas eu quero entrar em você, escavar você, explodir em você, dizer eu te queroeutequeroeutequero. Eu te quero de mentira. E de manhã, constrangidos, nó vamos falar que, sim, é claro que a gente vai se falar.

Uma página solta na agenda dele

- Ligar para a administradora. Reclamar cobrança dupla.
- Farmácia. Complexo B e camisinha.
- Não esquecer: vistoria.
- Falar com João que o filme é Carruagens de fogo.
A rose is a rose is a rose

Um bilhete velho. Fundo de uma caixa velha.

Filho,

Quando a mamãe briga com você é porque ela quer o seu bem. Se seu pai e eu não deixamos o gatinho ficar é porque a gente sabe que um menino com bronquite não pode ter bicho de pêlo. Mas amanhã você vai ter uma surpresa. Aposto que você nem sabe o que uma iguana.

Um beijinho, meu periquito.
Mamãe.

Uma foto. Mesma caixa.

5 adolescentes de sunga e touca. Braços erguidos. Atrás da foto: Clube esportivo Liberdade. Bicampeonato.
Ele não lembra o nome dos outros 4.

Parênteses

(um dia ele vai acordar no meio da noite com o barulho do vento. E vai lembrar que, quando era criança, achava que o vento saía dele, que ele é que fazia as árvores caírem e as telhas das casas saírem voando. E vai lembrar do medo que sentia de si quando ventava
um dia ele vai levar o filho a uma ópera
um dia ele não vai mais passar na farmácia
um dia ele vai beijar a boca dos amigos
um dia ele vai gritar, no meio da sessão, em um cinema lotado
NESSUM DORMA! NESSUM DORMA!
ALL’ALBA VINCERÓ!
VINCERÓ!
VINCERÓ.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

O menino e as cinzas

Olá, pessoal...

Um conto recém-escrito para vocês. Fiquem com "O menino e as cinzas"

O menino e as cinzas

Otávio ligou para dizer que não me ama mais. Aliás, não foi exatamente isso, Otávio nunca tinha dito que me amava antes. Meses atrás ele me disse – também via telefone – que gostava de mim e que queria que a gente ficasse junto. A voz através do aparelho, vacilante, tímida como convém a um homem de vinte e poucos anos que se dirige a uma mulher de trinta e tantos disposto a mudar o centro de gravidade da Terra.
Porque foi assim. Otávio passou a ser, depois daquilo, o meu ponto de referência no espaço. O mundo inteiro só fazia sentido depois de filtrado pelas lentes dos óculos de aros finos dele. De repente, eu me via desamparada e feliz, como alguém que, perdido no meio da floresta, encontra um mapa e descobre que não tem a menor noção de cartografia. Por um lado, experimenta-se a dor terrível de saber-se, agora sim, definitivamente perdido. Por outro, se é tomado pelo conforto de que um dia alguém esteve ali, passou pelos mesmos verdes, sentiu o mesmo frio. Alguém ouviu os mesmos sons, os barulhos que a mata faz para espantar intrusos, os ecos indistintos do que pode ser macaco, ave, sombra, fantasmas, duendes. Alguém passou por isso e sobreviveu. Mais ainda, sobreviveu com tanta galhardia que decidiu construir um modelo de salvação para os outros. Alguém desenhou os caminhos para mostrar que, dos ramos e folhas, existe uma saída.
E o meu mapa era Otávio. Suas particularidades me guiavam. As artérias pequeninhas ao lado dos olhos, aparentes na pele tão branca, eram trilhas abertas na minha floresta perdida. A boca, mais fina do que se esperaria de um homem alto, era clareira exposta, pouso de caçadores após noites longas de perseguição. A camiseta era sempre mais curta do que deveria ser. Até o jeito de usar as palavras era uma indicação de por onde eu deveria passar. Porque, na voz de Otávio, certos vocábulos ganhavam inflexão nova. Cidade, por exemplo, é palavra que ele pronuncia como se fosse recluso, como se só ele soubesse o que pode se ocultar nos centros. Adolescente, brigadeiro, fórum, medo. Signos novos, acepções diversas. Eu me conduzia em um mundo novo. Eu. ET.
E a agora Otávio me liga para dizer que não me ama mais. Aliás, não foi exatamente assim. Ele não disse “Eu não te amo mais”. Otávio nunca tinha dito que me amava. Ele deu uma pausa depois do alô, uns cinco segundos, e disse “Sabe (ele adora começar frases com sabe), naquela época que eu falei aquilo eu estava muito confuso. E agora eu pensei bem e vi que eu não quero isso para a minha vida”. Foi assim. Então, ele começou a falar sobre como algumas palavras são difíceis de serem passadas do alemão para o português, se eu não podia ajudá-lo com alguns termos.
Não foi assim tão rápido. Depois que ele falou “isso para a minha vida” eu fiquei muito quieta. Muito mesmo. A ponto de ele pensar que eu não estivesse ali ou não tivesse ouvido, olha só que engraçado. Aí ele perguntou “Você tá aí? Você ta aí” e eu disse “tô”. Ele: Tá tudo bem? Eu: Tá. Ele: Eu só não quero que isso afete a nossa amizade, você é a minha única amiga. Eu: É claro que não vai afetar nada, né, Otávio. Eu te adoro. Eu sabia que ele precisava ouvir algo forte, como um café que a gente dá para alguém que está bêbado. Continuei: “A gente faz muita confusão nessa idade. Aí ele disse “Acho que isso que você falou é uma verdade”. E só então falou sobre a língua alemã.
Eu traduzi os termos que ele pedia, eu aleguei sono e pedi para desligar. Encerrei a ligação, mas não tirei o aparelho do ouvido. Fique ali, parada, o zumbido do sinal de linha ecoando como um mantra pressago. Martelo, bigorna e estribo bombardeados pelo tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu contínuo. Dizem que quem medita consegue calar todas as vozes dentro de si e ouvir a música que o mundo toca. Os que conseguiram – ou dizem ter conseguido – sempre se referem a ela como uma vibração apenas, um zunido igual ao do vento. Deve lembrar o sinal de linha do telefone eu acho. Tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. Eu pensando no que ele disse, o “eu não quero isso para a minha vida”.
“Isso” era eu? Ou era apenas a situação e eu, que sempre tive uma tendência à vitimização, segunda filha em um grupo de três, a que não é, achei que ele estivesse se referindo a mim como “isso”. Imediatamente eu lembrei do macete que o professor de português da sétima série tinha ensinado para que a gente descobrisse se uma oração subordinada era substantiva. Bastava trocar a oração por “isso”. Eu, substantivo. O substantivo dá nome às coisas. Às coisas. Subordinação.
Otávio ligou para dizer que não me ama. Um poeta me perguntou se eu não achava que ele banalizava a palavra amor por usá-la demais em seus textos. Eu respondi que, com tal palavra, há que se ter cautela. Aliás, Otávio nunca disse que me amava. Aliás, Otávio nunca nem me beijou. Sem beijar há romance?Lembrei das aulas de ciências na escola. Pseudópodos. Falsos pés. Estratégia das células para englobar alimentos. Pseudo-romance o nosso. Estratégia para englobar o quê? Não. Não tem como ser falso o que deixa marcas.
Agora fico pensando em coisas e frases que eu poderia ter usado e não usei. Eu podia ter dito “Como você ousa me usar, me deixar apaixonada, me iludir”. Bem heroína de ópera. Trágica. Podia ter cortado a garganta dele só com palavras. Podia ter dito moleque, insensível, monstro até. Podia ter dito até “vil”!
Ou então podia ter me matado. Madame Butterfly. Otávio odeia ópera. Mas meus olhos muito azuis e inquietos não são olhos de quem se mata. É só observar. Virginia Woolf, Ana C., Sylvia Plath. Nenhuma tinha olhos maiores que o rosto. Os meus são. Meu avô, que amava óperas, só os chamava de “allegro vivace”. Não sou das que se matam. Sou das que sangram.
E sem Otávio eu sou um sangrar apenas. Sem gritos. Sem feridas. Sem lágrimas. É como depois de um enterro, sabe? Quando você volta do cemitério e se depara com o vazio do morto você não chora. Você fica ali, se esvaziando também. De tudo. Para não virar um oco, você procura os traços do ausente. Os chinelos arrumados de um jeito. As manchas de chá quente na xícara preferida. As frases sublinhadas nos livros. Você fica tentando lembrar de cada maneirismo. O jeito como segurava os talheres, o mastigar, até o respirar você quer reter. E, ao ver que não consegue se lembrar, você se enfurece consigo próprio. Por que diabos você nunca pensou que o tchau da noite passada não fora despedida e sim profecia? Sem Otávio eu vivo nas entrelinhas. No branco entre frases paralelas.
Minha irmã mais velha tem uma filha. Um bebezinho ainda. Ela – a minha irmã – me contou que a criança tinha descoberto os pés, que eles – os bebês – descobrem o corpo aos poucos, cada mês uma parte nova. Sou flagrada a descobrir o meu corpo de novo. Ontem fiquei mais de uma hora olhando para as minhas mãos. Os dedos, as unhas, tudo novo. As linhas da palma. Hoje me deparei com uma pintinha insuspeita na coxa. Desperto dona de uma anatomia. Não sei, porém, o que fazer com esse corpo que se expõe.
As três da tarde, Otávio me doeu. Eu sei que eram três horas porque olhei no relógio. Eu chupava um picolé de coco e era horrível. Otávio odeia coco, diz que, com aquela aparência, aquela casca dura, boa coisa é que não se esconde ali dentro. Eu até gosto de cocada, mas o picolé era muito ruim. Eu ia ter gostado de falar isso para ele. Essas bobagens que o deixavam todo cheio, ele gosta de estar certo.
Otávio ligou para dizer que não me ama. Jogo meus documentos sobre a cama para me certificar de que eu existo. Olho a foto do passaporte. Os vistos antigos. Aeroportos. Reler as anotações é dizer a mim mesma que eu posso traçar um rumo. Uma reta, quem sabe. Posso até ir a Cingapura. Eu tenho documentos, sim, tenho. Eu posso votar. Meu cartão de crédito é dourado. E o meu nome precisa ser abreviado.
Uma vez eu fui ao museu com Otávio. Muito tempo depois, quando ele disse que gostava de mim, eu falei que no meio da sala escura com as esculturas eu queria ter empurrado ele para a parede lisa e ter dado um beijo na boca. Ele respondeu: “Você tá me deixando com tesão”. Só que era pelo telefone. Eu devia ter beijado. Ou não.
Tudo continua igual sem Otávio. O rapaz que recolhe os jornais velhos passa às quartas-feiras. Às terças, eu faço as unhas. Às sextas, sai-se mais cedo do escritório, às quatro horas. Aos sábados, eu vou ao teatro e sempre juro que é a última vez que eu como pizza. Pergunte só às meninas. Tudo continua igual. Só que embaçado.
Um dia as calotas polares vão derreter. Essa cidade vai ser inundada. É claro que eu não serei nem lembrança mais quando isso acontecer. Então, vai se passar muito tempo, séculos até. Um dia um arqueólogo vai descobrir as ruínas da velha cidade. E, ao entrar em um prédio em escombros, ele vai encontrar um potinho de cinzas. As minhas cinzas. O arqueólogo vai achar que aquele artefato daria um bom presente para a moça que ele gosta. Ele imagina até o que vai escrever no cartão: “Do passado para você, meu futuro”. Então ele vai jogar as cinzas fora e guardar a urna.
As cinzas vão voar, soltas, até grudarem na poeira de um carro imundo – como serão os carros imundos do futuro? O dono do carro vai para casa abraçar a mulher e o filhinho. O menino, recém-alfabetizado, vai olhar para a sujeira do veículo e não vai enxergar sujeira, mas tela. Mal sabe ele que são os restos de uma mulher. Aliás, ele só vai perceber as mulheres alguns anos mais tarde, quando tudo nele arder.
O garotinho se aproximará de mim, cinzas, e com a ponta dos dedos traçará seu nome. E não é que ele se chamará Otávio?

domingo, 30 de março de 2008

As pequenas mortes

De volta com os posts. Já não era sem tempo, né? Bem, para celebrar a volta, resolvi publicar o meu conto mais recente. Com vocês, As pequenas mortes.

AS PEQUENAS MORTES
Tudo aconteceu graças a um “Eu preciso te ver agora” que precedeu a um “Nossa, há quanto tempo” e algumas outras frases cujo único sentido era levar àquele momento agora. E os dois sabem que as palavras devem ser abandonadas no já que se fez, espaço dos corpos somente, discursivos, eloqüentes.
E são as bocas sem vocábulos que expressam o que existe neles. Bocas que fazem as vezes de mãos, buscando os espaços que estas, há poucos minutos, percorriam. Bocas que se atiram a cada nesga de pele outrora protegida por roupas e que agora se expõe impudica. Acostumadas ao verbo, em certos momentos, elas, as bocas, ousam um balbucio, uma palavra perdida, um resfolegar. Desejo.
E os dois se lançam um no outro, órfãos de si, se jogam nas formas um do outro com a avidez dos que sabem que só será aquela vez. No rádio, a cantora de muitas oitavas na voz sussurra “I’ll give you everything you even dare to dream” e, se eles tivessem ouvidos para ouvir, saberiam que a frase assume corpo de profecia. Mas já se foi o tempo das predições e, naquele quarto, outra é a música, melodia feita sem notas.
Há quanto tempo eles esperaram pelo já? Meses, talvez. Ou talvez seja outra a medida aqui. Talvez as estações dos corpos sejam medidas pelos meio-sorrisos, pelas frases dúbias, pelas hesitações, pelas fugas que a mente dava quando, em meio a uma reunião do escritório, plantava imagens de línguas, camas e pormenores anatômicos apenas vislumbrados.
Fantasias já não importam. O que eles têm agora é um ao outro, corporificados. Entre suores, enrijecimentos, liquefações, eles sabem que pela primeira vez se encontram de verdade. Pêlos e pele se colam e, se eles pudessem prestar atenção, veriam que belo efeito causam coxas brancas e morenas quando entrelaçadas. E perceberiam também que o cheiro que recende pelo aposento barato é herdeiro de odores antigos, de antigas feitiçarias, de ervas que, mastigadas, levavam bruxas ao vôo.
De quando em quando eles se encaram. E os olhos lampejam as sentenças interditas. “Eu te quis desde o primeiro oi” ou “Você não sabe o que é não conseguir parar de pensar em alguém”. No entanto, o mel é quebrado pela violência com a qual o corpo se expressa. Então, eles falam arranhões, os nós dos dedos rasgando as costas, dentes esgueirando-se por pescoços, mamilos, umbigos. E, quando um engole o calor do outro, olham-se bem nos olhos, pois sabem que presa e predador são conceitos que não se aplicam àquele ecossistema.
O rompimento. Quando carne entra em carne, quando prazer e dor são unos, eles se apóiam no outro. As mãos de um, cravadas nos ombros do outro, querendo se aproximar do pescoço e sufocar aquela presença que vivifica e mata. As mãos do outro apertam a cintura do um, puxam mais para si, como se cavando ainda mais as entranhas se pudesse romper o invólucro do corpo e atingir-se o espírito.
Então o grito de um é o grito do outro. A queda de um no outro. Eles caem. Mortos.

Tudo aconteceu graças a um “Eu não acredito que você teve coragem de me trocar por essa piranha” e o som de um tapa. Correndo, descendo as escadas, a violência de se abrir uma porta. E as palavras abandonadas.
O carro já não é mais familiar como as trinta e seis prestações fizeram parecer. Sentada no banco de couro, ela sente a máquina resfolegar, cavalo selvagem no qual ela monta sem sela. Os pés no acelerador são esporas. Os pneus relincham.
Por que os olhos insistem em se manter secos? Onde as lágrimas que, há milênios, forjam seu gênero, marcando como iguais as que sentem a dor da vida tão profundamente que precisam expurgá-la de dentro, quer seja pelos olhos, quer seja pelo sangue do mênstruo?
Mecânicos, os dedos apertam o botão do rádio, mas os ouvidos não dão conta do homem de voz suave que pede “Deita nesse amor desarrumado”. Se dessem conta, ela saberia que música pode ser adaga. Não dão porque agora ela é o alheamento de si.
E, por estar presa a outro espaço, a amazona se deixa dominar pelo cavalo. Fogoso, ele galopa sem freios, rompe campos de concreto na rodovia que liga a idílica praia dos feriadões à cidade de segunda à sexta no horário comercial. Cascos vibrando, o cavalo abre os ventos, ele, livre, ela, cativa.
São as lágrimas que finalmente chegam ou esta noite está mais escura que as outras? As nuvens realmente cobriram a lua ou são as luzes dos outros ginetes, jogadas nos olhos dela, que eclipsaram tudo a sua volta? Galope mais forte, um prado se abre para a mulher-centauro.
Ah, Dom Quixote, ainda não aprendestes que moinhos não são gigantes e que muretas de contenção não são prados?Uma luz mais forte, agora ela vê a lua. Então é assim?
O cavalo de metal se cala e o grito é dela. A queda dele é a queda dela. Ela cai. Morta.

Tudo aconteceu graças a um “Aproveita que eles estão distraídos brincando e vem comigo”. Na intromissão de seus cinco anos, o menino sabia que tinha que descobrir porque o tio ocultava-lhe assim a própria mãe. Decerto um presente novo para ele. Dos irmãos do pai, era aquele seu favorito, a voz de homem-menino de vinte anos chamando-lhe “Vê cá, moleque, quem é seu tio preferido?”.
Esgueirando-se pelas paredes, lagartixa, ele vai atrás da brincadeira de esconde-esconde que a mãe e o tio vetam a ele. O som dos outro meninos cantando “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou” desaparece a medida que, aproximando-se da cozinha, ele ouve os balbucios da mãe que, respirando forte, tem a boca tapada pela mão do tio, como se a quisesse impedir de gritar.
Por que o tio está batendo na mamãezinha? Ele estranha aquela briga dos dois, principalmente quando a mãe tira a mão do tio da boca e cola os próprios lábios nos lábios dele. Por que a mãe levantou a saia e prendeu as pernas em volta do tio, sentada na pia?
Engraçado, parece aquela vez que entrou correndo no quarto dos pais e os pegou brincando de luta. O pai não tinha dito que aquela luta era diferente, que só namorados faziam quando se amavam muito? O tio não era namorado da mãe. “O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”. É como se tudo doesse dentro do corpinho de menino dele.
Correndo, ele se lança fora do campo de batalha. Já sabe o gosto do primeiro combate perdido. Engraçado, vai ficando mais velho a cada passo da carreira. O ar aberto do quintal tem consistência de soco na cara. Os pés cegos tropeçam nas próprias pernas.
O grito vem por causa do susto da queda. “Machucou, meu bebê? Conta pra mamãe onde tá doendo”. Mas como contar que, depois da queda, ele sabe que morreu?

Tudo aconteceu graças a mais um sábado sozinho em casa. Escritores são seres que gostam de solidão, poetas mais ainda. E, sendo assim, ninguém o convidava para um chopinho ou um cinema ou mesmo uma ida ao Maracanã. No apartamento apertado, a duas quadras da praia que ele nunca ia, poeta e palavras se esbofeteiam.
Aliás,palavras não. Palavra. Pois que apenas uma delas faltava para fechar aquele texto sobre a moça que tocava violino como se tocasse cada fio do cabelo do rapaz que amava em segredo. O poema tinha nascido praticamente pronto depois que conhecera a jovem tímida que, livro em punho, lhe pedia um autógrafo, você escreve tudo o que eu sinto. Rubor dos dois. Queria tê-la convidado para um lanche, para quê poesia?
Agora só faltava ela, a palavra. Uma palavra que combinasse com acordes, cordas, música, cabelos. A palavra que daria o ritmo certo à melodia. Uma palavra e ele ia dormir e esquecer que era sábado e que a única canção que ele ouvia era a que escapava pelas paredes finas do prédio, delatando a festa do vizinho.
Por que se escrevem poemas se quase ninguém os lê? O editor não lhe tinha mesmo dito que só publicava os livros dele porque davam prestígio à Casa Editora? O que a mocinha do autógrafo estaria fazendo num sábado à noite? Ela morava no subúrbio, lembrava, com um pai viúvo que implicava com sua mania de ler, afinal “livro não dá camisa a ninguém”. Ela contou-lhe tudo isso de olhos baixos e, quando ele perguntou o nome dela para pôr na dedicatória, ela ficou muito vermelha e sussurrou “Cher”, a falecida mãe adorava cinema, ela que acabou pagando o pato, ele sorri lembrando.
A sua mãe também adorava cinema. Musicais, principalmente. O pai, acadêmico respeitável, achava tudo uma alienação para as massas. Cinema, só o de arte. E assim, entre expressionistas, Bergman, Judy Garland e Liza Minelli, nasceu um poeta. Sozinho, em um sábado, tentando encontrar a última palavra do poema que brotou de uma menina do subúrbio chamada Cher e que gostava dos seus escritos.
E a palavra veio. Era grito. Grito, que óbvio, por que demorara tanto? E a palavra acordava o poema, a palavra estava viva. Ele, nem tanto.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Dos silêncios

E eu, que odeio clichês, sou obrigado a me render a um do maiores: escrever sobre as sensações que o final do ano traz. É clichê, mas vai lá, todo mundo sabe do que eu estou falando.
Uma pesquisa mostrou que 86% dos brasileiros (ah, números, dão um ar de seriedade a qualquer coisa) se sente estressado com as festas de fim de ano. Oitenta e seis!!! Viu, aquela sua irritação decembrina, a vontade de esfaquear o mundo junto com o peru ou enfiar a taça de champanhe na garganta de alguém não é exclusividade sua. Quase todo mundo sente isso. O que me leva a pensar: que tipo de gente se encaixa nos 14% restante, aqueles que não se estressam? Deus me livre de esbarrar com eles, devem ser uma coisa assustadora! Deve ser uma gente esquisita com o cabelo impecável e a pele lisa.
Acho que uma das coisas que mais contribuem para essa angústia ano-novina é a mania de fazer balanços, listas, retrospectivas. A gente acaba vendo que os contras foram maiores que os prós. Ou, pior ainda, que o ano todo passou em brancas nuvens, a vida parou – socorro, Drummond – ou foi o automóvel? E para lutar contra isso, o que fazemos? Festa.
Essa semana uma frase me perseguiu. Engraçado, várias pessoas se referiram a ela de uma maneira ou outra. É de um dos meus filmes favoritos, baseado um dos meus livros favoritos, ficcionalizando a vida de uma das minhas escritoras favoritas, Virginia Woolf. O filme é As horas e a frase: “Mrs. Dalloway, always giving parties to cover the silence” – Mrs. Dalloway, sempre dando festas para encobrir o silêncio.
Encobrir o silêncio. Eu tenho medo do silêncio. Afinal, não há nada mais eloqüente que ele. Pense só. Quantos silêncios inesquecíveis já falaram com você? O silêncio do momento em que uma boca vai se aproximando da sua e você, que esperava por isso ansiosamente, sabe que vai ser beijado. O silêncio depois de uma briga na qual você usou todas as frases perfurantes, mas é ele, o silêncio, que diz a mais importante: Eu ainda te amo. O silêncio gostoso de dar um telefonema para alguém só para ouvir a voz dele e vocês não têm mais o que falar e o silêncio fala: Não desligue, por favor. O silêncio de estar deitado no colo de alguém que faz cafuné na sua cabeça. O silêncio de ver gato dormindo. O silêncio quando o filme acaba e você ainda está digerindo o que viu. O silêncio bom depois de transar. O silêncio terrível do momento exato em que um caixão desce à sepultura e lançam sobre ele a primeira pá de terra.
E, no final do ano, parece que esses silêncios ficam maiores. Às vezes, eles realmente precisam ser encobertos. Noutras, eles precisam gritar. E eu peço aos Senhores do Tempo que me ajudem a saber qual a hora de cada uma das coisas. Que cada um de nós consiga conviver com os nossos silêncios. É um bom desejo de fim de ano, não? Uma resolução a mais para a lista: que eu saiba quando ouvir ou calar meus silêncios.
Provavelmente este post é o último do ano. Mais do que aquilo que escrevi acima, ele carrega silêncios em si. Carrega obrigados, carrega eu te amos, carrega expectativas. E carrega também um presentinho. Uma coisa-mais-linda da mais-que-linda Hilda Hilst. Feliz ano-novo! Feliz silêncios novos! Feliz silêncios felizes:

Se um dia te afastares de mim, Vida – o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida –
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
Estilhaça a tua própria medida.
(HILST, Hilda. Alcoólicas. São Paulo: Maison de vins, 1990)

sábado, 17 de novembro de 2007

Dos musicais, da beleza e do fim do mundo

Durante o mestrado, fiz uma disciplina com o grande Luiz Costa Lima. O tema era a obra de Joseph Conrad. A lembrança mais vívida que tenho daquele semestre não é, no entanto, de nenhum dos livros do marinheiro escritor que, confesso, nunca me atraíram muito. O que ficou em mim daquelas aulas foi uma frase de John Keats, o poeta, daquelas frases que mudam uma vida. Não esqueço do dia em que Costa Lima escreveu no quadro: “A piece of beauty is a joy for ever”- em tradução tosca, um pouquinho de beleza é uma alegria para sempre.
O mais engraçado é que sempre penso nessa jóia de verso quando estou assistindo a musicais do cinema. Sim, sou o último fã do gênero, assisto a todos, dos clássicos à mais recente tentativa de Hollywood de reabilitar o gênero. E, segundo alguém que me ama o suficiente para ler em mim até o que escondo de mim, gosto de todos, até dos ruins. Estou inclinado a concordar.
Mas, por que falar de musicais agora? É porque, daqui a pouco, o Telecine Cult vai apresentar um dos maiores de todos os tempos, um clássico, “West Side Story” – chamem-me purista, mas me recuso a referir-me a ele como “Amor, sublime amor”, título dado em português. Produzido em 1961 e dirigido por Robert Wise, é um daqueles filmes inesquecíveis, você vê e fica com as imagens guardadinhas no de dentro seu até ficar velhinho e virar esquecimento. A piece of beauty.
A história? Mais clichê impossível. Afinal, é uma adaptação de “Romeu e Julieta”. Sai Verona, entra a Nova Iorque dos anos 50. Saem Montéquios e Capuletos, entram gangues juvenis de porto-riquenhos versus os jets, os nativos da cidade. Junte uma Natalie Wood linda, jovenzinha e doce. Agora adicione canções inspiradíssimas, como “América” e “Maria”. A joy for ever...
É engraçado essa fascinação que os musicais causam. Ora, são verdadeiros atentados à verossimilhança. O sujeito está lá, no meio de uma chuva torrencial, e, de repente, sai dançando, chapinhando nas poças, cantando “I’m singing in the rain...”. Inverossímil? Talvez (confesso que já reproduzi a cena....). Inesquecível? Definitivamente. Musicais fascinam porque falam com partes da gente que, nesses tempos de distúrbio, gostaríamos de deixar adormecidas. Aquelas partes que nas horas cruciais, quando você já está com a emoção no limite, sussura uma canção no seu ouvido, um pano de fundo completando a cena. Afinal, eu defendo que a vida devia vir com músicas-tema, igual seriado americano.
Take 1 – Panorâmica por sobre montanhas suíças. Lindas. Julie Andrews, braços abertos. As colinas ganham vida com o som da música. Fiquei mais vivo depois dessa. Take 2 – Jennifer Hudson, triste de doer, perdendo tudo, o amor, a carreira, os amigos, a dor é física de tão poderosa. O desabafo: “Eu não quero ser livre! Eu vou ficar, e você vai me amar!”. Ainda bem que cinema é escuro. Take 3 – Audrey, Audrey, tão feliz, tão completa, cantando “Eu poderia ter dançado a noite toda e ainda pediria mais”. Eu dançaria com ela naquela hora. Take 4 – Nicole Kidman, de tirar o fôlego, descendo por um balanço e cantando que os franceses morreriam felizes por amor. Não sou francês mas, ali, morreria também. Ah, tantas cenas que eu poderia ficar repetindo aqui...
Música e imagens. Som e fúria. Dizendo – cantando – que ainda existem lugares secretos, Pasárgadas escondidas para onde fugir quando se fica triste, “triste de não ter jeito”. Deixo que Caio Fernando Abreu me ajude a pensar no porquê de amar os musicais. Porque eles ajudam a espantar o fim do mundo:
“O fim do mundo era o silêncio e o vazio. Era a solidão absoluta. (...)Eu precisava dar um passo além do fim do mundo. Foi então que eu descobri o jeito de dar esse passo. A maneira de vencer o fim do mundo era enchê-lo de sons e de cores. Então uma canção brotou do fim de mim, e eu cantei...” (ABREU, Caio Fernando. Pode ser que seja só o leiteiro lá fora. In: Teatro completo. Porto Alegre: Sulina, 1997)
P.S.1: Os filmes citados nos “takes” são: A noviça rebelde, Dreamgirls, My fair lady e Moulin Rouge.
P.S.2: Ironia da vida....acreditam que tenho um compromisso na hora do filme?

domingo, 11 de novembro de 2007

Labirinto:Cansaço?

Estou cansado. Aliás, não é nenhuma exclusividade minha. Parece que todo mundo anda assim. A resposta padrão à pergunta “E aí, como você está?” tem sido, na maioria das vezes: “Cansado”. Um mar de cansados. Um cansaço do mundo.
A última entrevista de Clarice Lispector, dada poucos meses antes de sua morte, à TV Cultura, é uma das experiências mais angustiantes pela qual um espectador pode passar. Programa em preto-e-branco, cenário praticamente vazio, câmera fechada no rosto da entrevistada. Longos silêncios. A mim, a parte que mais agonia causa é o momento no qual o entrevistador – uma voz apenas, nenhum rosto – pergunta: “Você está triste, Clarice?”. Ao que ela responde: “Não. Estou cansada”.
Não. Não estamos tristes. Estamos cansados. O que dói, no entanto, é que, lá no fundo, bem no fundo, nós sabemos que todo esse cansaço é tristeza ou algo parecido. A câmera está voltada para os nossos rostos, close nas olheiras, nos olhos vagos. A voz pressaga lança a pergunta: “Você está triste?”. “Não, estou cansado”.
Cansados. De ter que chamar de cansaço esse não-sei-o-quê que corta o de dentro da gente. Focalizados em preto e branco, exibimos um sorriso sépia e um ar de tédio, como se fossemos mímicos, a máscara branca de maquiagem, o terno preto, as luvas alvas. Uma coleção de gestos, pois que palavras nos faltam. A platéia em volta tenta decifrar os movimentos de nossas mãos e, para nosso alívio, ela grita: Cansaço! Com o polegar levantado para eles, sorrimos – aquele, sépia – “Acertaram!”. Acertaram?
Nessas horas, dá uma vontade de pedir um colinho. Deitar a cabeça nas pernas de alguém, sentir uma mão fazendo cafuné. Sem discursos. Sem freudismos. Só carinho. Vocês devem lembrar daquela música da Cindy Lauper, Time after time (se você nem sabe quem foi Cindy Lauper agradeça aos deuses pela juventude – é lindo ter dezesseis anos...). Pois bem, entre as milhares de frases de amor e melação da música (quem disse que sentimento é chique?), sabe qual a me emociona mais? Then, you say go slow, I fall behind – algo como: Então você diz “Pega leve”, eu caio pra trás...
Tudo correndo, facas, datas, prazos. Demandas. Pedidos. Ah, cansaço...será que tem alguém pra dizer “Pega leve”?
Por fim, e para a alegria, lanço a série “Ah, a poesia...”. Tome Antonio Cícero, um santo remédio para cansaços e maus-tratos da alma :
Canção da alma caiada
Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar

Mas à vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.

De dia caio minh’alma
Só à noite caio em mim
Por isso me falta calma
E vivo inquieto assim
(CÍCERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997)